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Dona Dionísia, memória e ancestralidade afro-indígena em Milagres-CE

por M7 NOTÍCIAS
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Dona Dionísia Severo é a mulher indígena cuja memória e a palavra nos falam de seus ancestrais. Sentada no alpendre da sua casa de taipa localizada no Sítio Pau-dos-ferros, ela nos faz o relato de sua ascendência. Ouvimos que sua avó foi caçada a dente de cachorro na Serra de Sant’Ana, ouvimos que seu pai era índio e transmitiu-lhe o saber sobre as meizinhas e ervas que ela usa para curar em Milagres, ouvimos também que ela conversa com os caboclos, que ela escuta as vozes dos encantados da mata.

Dona Dionísia Severo (2013), foto do Carlos Cesar

            A violência exercida sobre os indígenas do Ceará ao longo do período colonial, do século XIX e XX, é permanentemente rememorada através da frase: “Minha avó foi pega a dente de cachorro nas matas”. O colonizador a serviço da coroa portuguesa se lançou sobre a Capitania do Ceará com um único intuito, exterminar os grupos indígenas aqui existentes e ocupar suas terras.

A nação Kariri foi atacada e exterminada pelos colonizadores desde fins do século XVII até meados do XIX. Combatidos durante a chamada Guerra dos Bárbaros (1690 a 1730), os indígenas Kariri resistiram tanto quanto puderam. Foram aldeados, depois perseguidos, perderam suas terras, ficaram sob a tutela de caudilhos locais que de tudo fizeram para extingui-los. O próprio governo da Província do Ceará decretou a inexistência de índio no Ceará já na década de 1860.

Aqui no sul do Ceará, na região do Cariri, no antigo território dos indígenas Kariris, um grupo de índios procurava resistir ao seu extermínio. Estes indígenas conhecidos como Kariri-Xocó foram aldeados pela primeira na década de 1840 na Vila de Nossa Senhora dos Milagres. Esses Kariri-Xocó resistiram a todo tipo de opressão impetrada pelas autoridades políticas de Milagres e os latifundiários do Vale do Riacho dos Porcos.

Reunidos na Aldeia da Serra da Cachorra Morta, área do município de Milagres que compreende hoje a Serra do Ouricuri, o Sítio Serra Brava e o Distrito de Anauá em Mauriti, os Kariri-Xocó tentaram sobreviver aos ataques dos fazendeiros, a fome, as doenças e a invenção de narrativas com o objetivo de desqualificá-los enquanto seres humanos. Até que em 28 de abril de 1867 foram barbaramente massacrados pelos fazendeiros locais. Os sobreviventes se esconderam nas matas e passaram a resistir ao seu extermínio guardando na memória a história de seus ancestrais, seus conhecimentos tradicionais, sua oralidade e suas encantarias.

Dona Dionísia nos falou em 2013 dessa violência, das caboclas sendo pegas a dente de cachorro nas matas, do refúgio dos sobreviventes do massacre da Aldeia da Serra da Cachorra Morta nas matas do Sítio Ipueiras localizado nas bordas da Serra do Ouricuri antigo território Kariri-Xocó. Ela nos informou que nasceu nesse mesmo Sítio Ipueiras, que era filha de um pai índio e de uma mãe que era neta de uma índia que havia sido escrava numa fazenda na Barra do Jardim.

Mulheres indígenas perseguidas, escravizadas e violentadas. Dona Dionísia Severo nos relata que sua mãe serviu nas cozinhas dos engenhos locais, que ela aprendeu com sua avó a história de sua bisavó que se embrenhou nas matas da Chapada do Araripe e foi comida pela cachorros que os potentados locais puseram atrás dela. Dona Dionísia relata que sua avó conhecia muitas rezas e que com essas rezas curava e fechava o corpo daqueles que lhe pediam saúde.

Homens indígenas que foram obrigados a impor silêncio sobre seus saberes ancestrais. A história que Dona Dionísia nos conta de seu pai é a de um homem que trabalhava nos engenhos no tempo da moagem e nos currais de gado do Vale do Riacho dos Porcos. Além disso, esse índio conhecia bem o poder do mato. Ele falava com a terra, comungava com as raízes, as sementes, as folhas. Recebia os favores dos caboclos e dos encantados da mata.

Dona Dionísia Severo trazia em si todos esses conhecimentos recebidos de sua avó, de seu pai, dos seus ancestrais. Esta mulher indígena circulava pelas ruas de Milagres distribuindo suas ervas e meizinhas, mantendo vivo o saber originário de seu povo. Dona Dionísia nos falava dos seus caboclos, dos encantados que ela recebia, dos ensinos que eles lhe comunicavam.

Sua presença em Milagres mostrava que apesar de toda a política de extermínio perpetrada no estado do Ceará contra as populações indígenas a resistência dos povos originários do Brasil era constante, eles se recusavam a deixar sua memória, sua história e seus saberes morrerem.

A mulher indígena, essa liderança local, Dona Dionísia Severo, nos deixou no mês de janeiro de 2024 aos oitenta de três anos, mas o seu legado, seu trabalho de resistência, seus saberes, seu papel como mulher indígena que lutou para manter viva a sua identidade e seu povo, nos impõem um desafio, torná-la imortal como uma das legítimas heroínas das lutas contra a política de extermínio dos povos originários em nosso país, extermínio este que ocorre por meio da violência ostensiva das armas ou simbólica dos discursos e narrativas falaciosas que inventam uma falsa imagem dos indígenas como pessoas indolentes, bárbaras, violentas ou canibais.

Dona Dionísia Severo, seu esposo e seu filho (2013), foto do Carlos Cesar

Em Milagres, a violência contra os indígenas é ostentada de forma escarnecedora em praça pública através do monumento em homenagem a lenda de Sousa Presa e da Bela Índia, também no hino do município que exalta o colonizador matador de índios ferazes ou violador de índias românticas. Há ainda o esquecimento do terrível Massacre da Aldeia da Serra da Cachorra Morta, silêncio que paira sobre toda a população local, e este foi um episódio cruel da história do Brasil e do Ceará ocorrido nas terras deste município e que hoje praticamente nenhum dos habitantes do município conhece.

Enquanto isso, Dona Dionísia a legítima mulher indígena que habitou Milagres por oito décadas resistindo para manter sua ancestralidade, sua identidade e seus saberes originários vivos não teve o devido reconhecimento, poucos souberam de sua existência, de suas lutas, de seu trabalho, de suas pajelanças. A cidade de Milagres venera um bandeirante lendário, mas esquece seu povo, sua memória, sua própria história, esquece aqueles que existindo habitaram a terra sertaneja onde o sangue Kariri ainda clama por justiça.

Por Carlos César Pereira de Sousa
Professor da E.E.M.T.I. Dona Antônia Lindalva de Morais
e mestre em História pela Universidade Regional do Cariri

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